terça-feira, 11 de novembro de 2008

Se você sonha com nuvens

as palavras escorrem como líquidos
lubrificando passagens ressentidas
[1]

Os dois versos acima constituem um poema independente publicado no livro Inéditos e dispersos, de Ana Cristina Cesar. Neles, o signo verbal aparece com a capacidade de colocar em movimento, por seu poder de lubrificação, “passagens ressentidas”, expressão de certa ambigüidade: ressentidas significa que essas passagens são marcadas pelo ressentimento ou que elas são sentidas novamente? De qualquer forma, há o reconhecimento de uma certa propriedade pertencente à palavra, a de aliar-se a outros signos adquirindo, assim, novos significados, que é colocada em prática em “Se você sonha com nuvens” (bordado sobre voile, 1991), de Leonilson. Essa mostra-se como uma obra de grande simplicidade, mas dotada de uma profunda significação, graças ao modo como é construída, aliando a linguagem visual à linguagem verbal, o que possibilita a construção de novos significados a partir de signos já existentes.
O primeiro apelo da obra é certamente visual: o que vemos é uma cruz, símbolo universalmente conhecido, ainda que ligado a significações plurais. Essa cruz não é de madeira, nem de metal como estamos habituados a ver. É uma cruz de tecido branco: um pedaço de voile com bainhas forma a parte vertical da cruz, sobre o qual um outro pedaço menor e também com bainhas é costurado, formando a parte horizontal. Sobre o pano, foram bordadas duas frases em preto. Na parte vertical da cruz lemos: “Se você sonha com nuvens” (que corresponde ao título da obra). E na parte horizontal, escrito de baixo para cima: “A distância entre as cidades”. Finalmente, a última coisa a ser vista é a existência de quatro furos nas extremidades superiores da cruz, a permitir que ela seja pendurada numa parede.
A cruz, além de tantas outras significações a ela associadas, é o símbolo mais difundido do cristianismo, sendo sua origem o instrumento de tortura e morte empregado pelos romanos e com o qual Cristo foi morto, segundo os Evangelhos. A cruz simboliza, então, ao mesmo tempo, o sofrimento e a redenção alcançada por meio dele. Embora o signo da cruz remeta imediatamente à religião cristã, ele possui significados bem mais antigos e mais amplos que podem ser evocados para a leitura dessa obra:

O significado arquetipal do símbolo da cruz é sempre o da conjunção dos opostos: o eixo vertical (masculino) com o eixo horizontal (feminino); o homem com a mulher; o superior com o inferior; o tempo com espaço; o ativo com o passivo, o Sol com a Lua, a vida com a morte.[2]

Além disso, o signo da cruz vincula-se modernamente a outros significados, como a morte (devido a seu uso fúnebre) e o socorro médico-hospitalar, além de constituir o símbolo da adição na matemática. Portanto, a apropriarção do signo da cruz carrega a obra de uma gama de possíveis significações. Mas a presença de outros elementos constituintes da obra vai operar também uma ressignificação desse signo.
O fato de essa cruz ser confeccionada com tecido, e um tecido leve e delicado como o voile, dissolve, de certa forma, o caráter religioso da cruz, fazendo-a perder sua imponência e majestade de insígnia cristã, tornando-a frágil e suscetível a ser rasgada e suja. O pano branco que é a matéria-prima dessa cruz pode, também, ressaltar seu aspecto “hospitalar”, tanto por sua alvura quanto por remeter à gaze com que se limpam as feridas e se fazem curativos. Além disso, a sua brancura torna-a como que esvaziada, apagada de sentido e passível de ser preenchida com a escrita, com as idéias e a interpretação de alguém, como o faz o próprio autor ao inserir nela suas frases. Ao fazê-lo, ele aponta não para uma harmonização e integração dos opostos, da qual a cruz seria símbolo, mas justamente para a tensão entre eles.
Assim, as duas frases inseridas na cruz seriam pontos de vista e estados mentais opostos e inconciliáveis. De um lado, o sonho com nuvens, o universo da fantasia, do devaneio, do otimismo onde tudo é possível e não existem barreiras ou privações. Do outro, o mundo concreto e repleto de contradições, feito pelas mãos humanas e representado pela cidades, distanciadas entre si por um espaço que jamais é preenchido. Pode-se até buscar refúgio em um estado de eterno sonho, mas não esperar que do sonho resulte a solução dos conflitos existentes, pois “se você sonha com nuvens”, “a distância entre as cidades” permanece.
Pode-se afirmar, então, que o signo da cruz resta completamente desconstruído: primeiro, perde sua força e seu caráter redentor, depois, mostra-se incapaz de conciliar opostos, restando-lhe apenas utilidade como curativo para feridas advindas, justamente, da não-redenção e da não-conciliação. Ao inserir na cruz apenas duas frases, deixando nela ainda muito espaço em branco, o autor convida que cada um imprima nela sua própria leitura, sua própria ressignificação. Ao utilizar-se do bordado para escrever, atribui sentido ao símbolo não de forma bruta e impositiva, como o fazem os líderes (homens), mas com a delicadeza, silêncio e suavidade das bordadeiras. Finalmente, os furos que tornam a obra apta a ser pendurada na parede permitem que ela seja ali ostentada como os crucifixos de madeira, prata ou ouro que adornam ou templos ou outras repartições, religiosas ou não. Assim, o artista oferece a esses lugares uma cruz despida de alguns de seus traços tradicionais, como a rigidez do material, e revestida de novas significações. Uma cruz leve, “dócil” e maleável, que aceita inclusive ser vista simplesmente como uma... cruz.

[1] CESAR, 1998, p.87
[2] PELLEGRINI, Luís. Cruz: símbolo da união dos opostos. Planeta - Símbolos Esotéricos. São Paulo: Ed. Três. n. 129A. Jun. 1983. p. 10-13

Nenhum comentário: