domingo, 17 de fevereiro de 2008

O poder da narrativa em "O jardim secreto" II

Na transposição feita por Agniezka Holland de “O jardim secreto” ("The secret garden", EUA/Reino Unido, 1993) para o cinema há uma seqüência que capta de forma aguda, através de uma série de signos imagéticos, a metamorfose oriunda de um despertar, de um “abrir os olhos”. Trata-se do primeiro contato de Collin com a luz. Desafiado por Mary, o menino havia aceitado abrir as janelas de seu quarto, que eram tapadas por tábuas de madeira. A seqüência inicia-se por um brevíssimo plano geral do exterior da casa e seu gramado iluminados pelo sol, ao qual se segue a imagem do interior do quarto sombrio, com a luz do exterior entrando pelas frestas entre a tábuas da janela. Subitamente as tábuas que fechavam a janela caem, e vemos Mary de frente para a janela e Collin um pouco mais afastado, em sua cadeira de rodas, cobrindo os olhos com as mãos. Através da janela, vemos Dickon no lado de fora, montado num cavalo branco ao qual as tábuas foram amarradas para serem puxadas e arrancadas. Dickon chama Mary para que ela o ajude, ela empurra a carreira de Collin para perto da janela e sai do quarto. A luz do dia invade o recinto e Collin tapa os olhos com as mãos, como quem está sendo cegado pela luz intensa à qual não está habituado. Ele abre os olhos e fica em pé apoiando-se na cadeira e vê, pela janela, Mary montada no cavalo com Dickon lá fora. Collin chama por ela e ela lhe acena, mas então ele desequilibra-se e cai no chão, onde fica gritando e debatendo-se. Os empregados entram no quarto e o colocam na cama, mas ele continua gritando histericamente. Mary entra no quarto, vai até em frente à cama, sobe num banquinho e grita com ele, mandando-o parar e dizendo que todos o odeiam e que alguém doente não conseguiria gritar daquela forma. Collin diz que tem um caroço nas costas que o deixará corcunda como seu pai, ela sobe na cama, examina-o e diz que não há caroço algum. Em seguida, a governanta entra no quarto, repreende Mary e diz que vai despedir a empregada que a deixou entrar no quarto. Collin grita com ela, proíbe-a de despedir a moça e ordena que ela saia do quarto. No final da seqüência, Collin está deitado na cama e Mary sentada a seu lado. Ele diz que talvez não esteja doente e que gostaria de sair e encontrar o jardim de sua mãe. Mary então lhe conta que já entrou no jardim. Enquanto ela vai descrevendo o jardim para ele, vemos a expressão de Collin, de olhos fechados e sorrindo, à qual sucede um plano geral exterior com uma pradaria muito verde e iluminada e ovelhas correndo, com uma trilha sonora de flauta e coral, além do canto de pássaros.
Vemos, em primeiro lugar, uma passagem das sombras para a luz. O ato de abrir as janelas e deixar a luz entrar demonstra a intenção de ver, de explorar novas possibilidades, de sair da situação de confinamento em que Collin encontrava-se até então. Mas essa passagem não se faz sem dor: num primeiro momento, a luz agride os olhos que nunca conviveram com ela. Além disso, para que uma transformação assim se realize, é necessário abandonar velhos hábitos incompatíveis com a nova postura que se quer assumir. A queda de Collin e seu ataque de histeria demonstram que ele ainda não estava pronto, ainda estava demasiado concentrado em seus temores e carente de ousadia e força. Ao perceber essa sua carência, ele volta ao comportamento que sempre tivera. Somente a intervenção de Mary, lançando luz sobre a real situação do garoto, vai fazê-lo perceber que é possível superar seus limites, pois ela própria já havia percorrido semelhante caminho, amparada por Dickon, o menino plenamente integrado à Natureza. Aqui, Dickon contribui com sua força, puxando as tábuas que cobriam a janela, mas é Mary quem opera a mediação entre o mundo exterior e o universo fechado a que Collin estava preso. E ela coloca escancaradamente diante de Collin a imagem que todos faziam dele. Nesse momento, não por acaso, ela está sobre um banquinho e focalizada em plongé, o que deixa sua estatura muito maior do que é de fato e que a torna enorme diante do menino, focalizado em contra-plongé: ao reconstruir seu imaginário e sua história pessoal, Mary forjou para si uma força que excede em muito seu tamanho aparente. E essa mesma força ela transmite para ele em seguida, levando-o a seguir o mesmo caminho que ela já percorrera. Ao questionar a veracidade de sua doença, o menino começa a destruir a história que lhe haviam narrado sobre ele próprio. Finalmente, ao descrever-lhe o jardim, Mary vai nutrir o imaginário dele com os elementos que permitirão a ele reconstruir sua própria história. Os olhos fechados do menino e sua expressão de deleite ao ouvir a descrição de Mary revelam que as coisas que ele imagina nesse momento serão poderosas o suficiente para conduzi-lo a uma nova postura diante de si mesmo e do mundo.

6 comentários:

ED CAVALCANTE disse...

VI ESSE FILME, LEMBRO-ME QUE A MENINA DESCOBRIU O JARDIM P Q FOI ATRAS DE UM PASSARINHO! O FILME É LEVE E FORTE AO MESMO TEMPO, UM PARADOXO Q SÓ O CINEMA PROPORCIONA!

blog do pedro disse...

Não vi este filme ainda, bem como também não li o livro. Mas gostei bastante do tema, achei bem interessante; eu me interesso por obras, cujo simbolismo está sempre presente como argumento básico.
Valeu a dica!

Muito bom o blog, meu conterrâneo (sou gaúcho também..rs).
Abração!!! =D

http://bl-dopedro.blogspot.com/

Ronny Ventura disse...

Fala meu brother!

Obrigado pela visita.

Ainda não vi esse filme mas fiquei muito interessado pela sua resenha sobre o mesmo.

Parabéns pelo blog, muito bom mesmo!

forte abraço!

Johny Farias disse...

Bacana o texto, também não vi o filme :(

Obrigado pelo link Brother, valeu mesmo.

abs

Juliana Lourenço disse...

Puuuutz ... esse filme é tudo de mais lindoe bucólico que existe! rsrsrs A fotografia é perfeita! É demais mesmo. Eu amo esse filme.

www.jlouthings.blogspot.com

Nelson L. Rodrigues disse...

legal seu blog. organizado, limpo!